segunda-feira, junho 06, 2005

O PRIMEIRO BRASILEIRO 8

Maila-Kaarina



O fascinado lusitano, logo que começou a limpar a área que demarcara para sua morada, sentiu fome. Viu que era necessário ir à luta, buscar alimentação. Decidiu pela pesca no rio. Acompanhou a margem arborizada cem metros adentro, onde deparou-se com uma curva mais sinuosa que acumulava águas mais largas, mais rasas, onde os peixes, de bom tamanho, podiam ser facilmente capturados a pauladas. Homem da Canoa Grande não sabia, ali estava começando sua vida de índio. Igual a daqueles que o espreitavam curiosos.
Cinco peixes corpulentos e pronto, sua comida do dia estava resolvida, e podia ainda ser complementada com fruta que passarinho comesse. As técnicas de obtenção de fogo eram por ele conhecidas, e logo estava pronta sua primeira refeição em terras que viriam a ser brasileiras. O peixe era de boa aparência, até parecia com espécies do continente europeu, mas Homem da Canoa Grande sabia dos perigos que o rondavam. Apesar da fome imensa, convinha comer devagar, só um pouco. Depois, um tanto mais, sentindo, com cuidado, o efeito da comida sobre o corpo. Nem tudo que parecesse sadio, deixaria de ser experimentado com prudência. Há vegetais venenosos, carnes venenosas. Cuidado era preciso. Acautelava-se, falando consigo mesmo.
Depois de ir ao fogo de lenha seca, Homem da Canoa Grande tomou um dos três peixes que havia escamado e tirado as vísceras, colocou-os sobre um prato de liga metálica que trouxera, tomou o garfo, a faca, e começou a buscar o filé do costado do piau gordo, bem pesado, adulto, com certeza. Delícia de carne, podia comê-los de uma só vez e nada faria mal. Mas fez como recomendava a prudência, enquanto limpava os troncos que serviriam à sustentação da cabana.
Trabalhou durante todo o resto do dia e quando o céu começou a avermelhar-se, espetáculo que encantava os seus olhos postos sobre aquele mar, Homem da Canoa Grande parou, deixou-se ficar a contemplar o anoitecer, absorto, e chorou. Nem ele mesmo sabia explicar aquela loucura: ficar sozinho numa terra como aquela, primitiva, inesperada, cheia de perigos. Sim, com certeza, estava em perigo, sabia. Aqueles silvícolas referidos na carta de Caminha e confirmados pelo comandante Gaspar de Lemos existiam, ainda estavam em sua memória, comendo carnes humanas sem nenhum pudor, e não eram nada dóceis como dizia o primeiro texto sobre a terra.
A armação de sua cabana estava quase pronta. Na manhã seguinte faria os enchimentos de gravetos e os entrelaçaria com galhos de folhas grandes. Realimentou a fogueira antes que a escuridão chegasse e preparou os peixes que sobraram ao som da cantoria dos pássaros que disputavam espaço nas árvores da mata, o medo chegando, o guincho dos animais desconhecidos ecoando nas profundezas daquelas terras mais atrás, onde terminavam as dunas. Agora, ele sentia medo. Não medo da morte, que ele não sentia, mas medo da noite desconhecida, do inesperado.
Homem da Canoa Grande ainda não dormiu tranqüilo naquela noite, apesar de todo o cansaço da labuta do dia. Os guinchos vindo da escuridão o espantavam. As luzes, a piscar na mata, numa dança intrigante de vaga-lumes, causavam-lhe sono, mas os vôos baixos e espalhafatosos de corujas causavam-lhe sustos, e ele não se deixava adormecer. Lembrava os formigões pretos a caminhar naquelas areias, temia aranhas, cobras, escorpiões. Tudo ali era desconhecido. Que animais por ali rondavam, Homem da Canoa Grande não sabia, como nada sabia sobre insetos, vegetação, clima, nada. Nada ele sabia sobre aquelas terras.
Quando, à sua frente, sobre o oceano, os primeiros raios de sol da manhã iluminaram o céu vermelho, Homem da Canoa Grande rendeu-se ao sono. O dia, afinal, era mais amigo naquela ocasião, mais seguro, e o protegeria no descuido do adormecimento. Acordou com grãos de areia batendo-lhe no rosto. Era um certo tipo de caranguejo daquelas praias, a maria-farinha, mimetizada com a areia, a cavar um buraco para proteger-se da subida da maré. Levantou de um pulo, assustado, e matou o bicho com um facão comprido, de boa lâmina, peça cuidadosamente trabalhada. Um esmero.
O dia claro, o céu azul, de um azul claro, brilhante, aquela brisa, o ar marinho, um cheiro forte de iodo vindo dos sargaços à beira-mar, aquilo era muito gostoso para o corpo e para o espírito de Homem da Canoa Grande. Ele acordara disposto, apesar das poucas horas de repouso, quantas, nem ele sabia, e correu à mata para providenciar o enchimento dos lados e da cobertura de sua cabana.
Voltou à curva do rio onde pescara no dia anterior, e encontrou terra barrenta, que poderia dar mais proteção ao enchimento lateral de sua casa. Precisaria de algo para transportá-la. Mas isso seria serviço para um outro dia. Primeiro, preocupava-o o essencial. Olhando a vegetação em redor, Homem da Canoa Grande percebeu um bando de sagüis num cajueiro, comendo a resina da árvore, fazendo festa. “Se os macaquinhos comem, posso comer”, pensou, e dirigiu-se para a árvore onde estavam os pequenos primatas.
Após a debandada do grupo símio, tomou um pouco daquela resina e sentiu-lhe o cheiro doce a penetrar-lhe as narinas, mas não aprovou seu gosto. Como os símios permaneceram por perto, viu-os a comer uma fruta pequena, de uma árvore frondosa. Aproximou-se, colheu uma delas, tomou uma faca pequena e a cortou na metade. Sentiu o cheiro desconhecido, o sumo pegajoso e lambeu, cuidadoso, aquela polpa branca, sentindo um prazer gustativo jamais experimentado. Lambeu bem devagar, sentindo suas própria reações. Colheu outros frutos como aquele e voltou à cabana. Sim, poderia comê-los. Os lábios pegajosos deixados pelo sumo da fruta causavam um certo desconforto, mas aquilo era o de menos. Viria a saber depois, tratava-se da maçaranduba, farta naquelas matas e assim chamada pelos nativos.

Eduardo Alexandre

por Alma do Beco | 8:21 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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