domingo, junho 05, 2005

BOB NA PREÁ



Viagem ao universo de Marcelus Bob

Por Moura Neto
Fotos: Anchieta Xavier e
acervo do entrevistado


Mãe Luíza ainda não era um bairro urbanizado, mas do alto do morro descortinava-se uma das mais belas visões panorâmicas da cidade.
Numa noite enluarada, Odete do Carmo saiu do seu barraco, chamou o filho mais velho, Marcelino, na época com uns sete anos de idade, e lhe disse:
- Sempre que tiver a oportunidade de ver uma paisagem dessa, pegue papel e lápis e registre. Faz bem à alma.
O recado foi dado enquanto ela apontava para o cenário deslumbrante que se espraiava diante daquela gente humilde, mas honesta, que habitava então uma das áreas mais carentes da capital – a lua cheia despontando por trás das dunas e iluminando a vastidão do mar. O menino que já gostava de rabiscar o que vinha na imaginação se sentiu ainda mais estimulado com aquelas palavras. Quase 40 anos depois, ao recordar esta história, algumas lágrimas umedecem o rosto de Marcelino William de Farias. O filho de dona Odete, que adotou o nome artístico de Marcelus Bob, tem agora 46 anos, 25 dos quais dedicado à carreira de artista plástico.
O pseudônimo foi adquirido no tempo em que estudava na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (atual Cefet), onde concluiu o curso de mineração. Zé Aruanã, estrela do atletismo da escola, brincou com o colega que gostava de correr nas provas de 3 mil metros, mas que, bem sabia, tocava violão para a turma nos intervalos de aula:
- Se tem Bob Dylan, se tem Bob Marley, tem também Bob William!
Foi assim que ele ficou conhecido como Bob. Mais tarde, porém, outros dois amigos, Fernando Mineiro (deputado estadual) e Roberto Hugo (professor de matemática), passaram a lhe chamar pelo nome com o qual viria assinar seus quadros e ser reconhecido como um dos mais ativos e talentosos artistas da cidade. Foi ainda na ETFRN que recebeu, quase por acaso, um valoroso incentivo. O professor de inglês Thomé Filgueira surpreendeu o aluno desenhando a caricatura de Mick Jagger, o famoso astro do rock. Ao invés da censura, o elogio. “Muito bom”, exaltou o professor, hoje considerado uma das grandes expressões da pintura impressionista potiguar. “Apareça amanhã no ateliê”, recomendou. Ele foi, sim, e acabou pertencendo uma geração que fez jus ao ateliê da escola. Entre os anos de 1976/78, por lá também estiveram Carlos Sérgio Borges, Júlio César Revoredo e João Natal.
Os caminhos trilhados ainda com certa timidez o levaram a encontrar confiança para os passos que daria em seguida. Em março de 1980, aos 22 anos, tomou a decisão que deixou toda família apreensiva. Pediu demissão doIBDF (atual Ibama), onde entrou por concurso público, tendo se classificado em primeiro lugar, para militar exclusivamente no meio artístico. Ele até que gostava do que fazia no serviço público federal, onde, por mais de
dois anos, exerceu a função de auxiliar agropecuário. Na prática, reproduzia mudas nos viveiros do Instituto. Mas achava que os chefes tinham mentalidade retrógrada. Era demais para ele!
- Estou honrado em conseguir esta façanha neste elefante sem memória que é o Rio Grande do Norte -, afirma Marcelus Bob, referindo-se ao fato de viver para a arte e da arte durante duas décadas e meia.
Antes de explicar melhor o que quis dizer acima, um parênteses. A expressão “elefante branco sem memória”, segundo Marcelus Bob, foi cunhada pelo poeta Carlos Gurgel numa das muitas tertúlias que compartilharam. A façanha que deixa o artista honrado, contudo, é a de não ter tido outro ganha-pão, durante todos estes anos, senão aquele que conquista, dia após dia, com a criatividade com que manuseia pincel, óleo, esmalte sintético, acrílico e tudo o mais que pode servir de tinta e deixar marcas na
tela, como café e remédio, produtos com os quais já fez trabalhos experimentais.
- Nunca mais minha carteira foi assinada; nem sei por onde ela anda.



Arte irreverente e perigosa
Marcelus Bob é um legítimo exemplar remanescente da contracultura, coisa cada vez mais rara hoje em dia. Gosta de chocar com o comportamento irreverente e o estilo agressivo com que se apresenta até nos salões oficiais.
Além das aparências, contudo, temos a impressão de estar diante de uma pessoa sensível e gentil com seu semelhante.
Nosso primeiro encontro foi na Pinacoteca do Estado, abrigada no antigo Palácio do Governo, na Praça dos Três Poderes, centro da cidade. Conversamos por quase duas horas, à sombra das árvores frondosas do pátio externo do prédio. O artista usava camiseta sem mangas, pintada por ele mesmo, calça preta justa e desbotada, bolsa de pano a tiracolo, um par de chinelos “japonês” brancos e um colar de sementes nativas no pescoço. Os cabelos longos e ondulados estavam espalhafatosamente voando sobre o rosto, no qual repousava um óculos escuro sobre os olhos que estampavam o rescaldo das estripulias da noite
anterior.
- A cabeça de artista é algo muito perigoso – disse ele, tirando os óculos do rosto e fitando o tempo que se arrastava preguiçosamente naquela manhã.
- Por quê? – questionei, procurando entender o que residia no íntimo daquela tirada filosófica.
- A arte é imprevisível! A arte é Deus!
- Se é Deus, pode tudo?
- Pode tudo, sim, ela é absolutamente livre.
O diálogo reproduz a dimensão da essência do que Marcelus Bob é enquanto artista. Um transgressor. Numa das salas daquela mesma Pinacoteca há um quadro seu.
A cena retratada em óleo sobre tela é algo só concebível na imaginação livre do artista: uma freira joga baralho no boteco. Seu parceiro é um homem vestido de paletó, com gravata e chapéu. Na parede do estabelecimento, o relógio marca 2h35 da madrugada. Em cima da mesa, além das cartas, copos e garrafa de pinga. Ao fundo, o dono do bar, um “humanóide encapuzado”, como o artista batizou estas figuras que aparecem em muitos de seus trabalhos e se tornaram, como ele mesmo frisa, sua marca registrada (assim como a de Vatenor são os cajus e a de Assis Marinho, os pescadores).
- Como você classifica seu estilo?
- Possibilista – respondeu, com objetividade.
- E quais as influências que você recebeu?
- De todos os pintores que pude conhecer.
- Mas quem exerceu maior influência sobre sua pintura?
- Nunca tinha pensando nisso – disse, depois de uma pausa. Nova pausa e acrescentou:
- Acho que Van Gogh, pelo desprendimento, soltura, genialidade e extravagância
da sua arte.
- Em matéria de extravagância, há o surrealismo de Salvador Dali com o qual você deve se identificar muito bem, não é?
- É... Salvador Dali entendia de perspectivas. Antônio Marques (marchand e idealizador de uma feira de antigüidades) me disse uma vez que, tecnicamente falando, me considerava um grande artista porque eu também entendia de perspectivas.
Possibilidades e Perspectivas.
Estas parecem ser as ferramentas que Marcelus Bob explora para construir sua arte sem fronteiras.
Cem por cento autodidata, ele cresceu num ambiente familiar propício à carreira que escolheu. A avó gostava de ouvir música clássica. A mãe era vocalista de umcoral da igreja. O pai fazia esculturas em madeiras, depois de ter sido repentista no Vale do Açu (José Pedro de Farias Filho acabou sendo homenageado ainda em vida, emprestando seu nome para uma rua do Conjunto Nova Natal, na Zona Norte, onde mora: rua Artesão Farias).
Nascido em Natal, Marcelus Bob cresceu no Paço da Pátria, “debaixo da Pedra do Rosário”, às margens do Rio Potengi. Dali, mudou-se ainda criança para Mãe Luíza. Recebeu uma educação rígida, reconhece, mas sempre encontrou apoio na família para seguir seu destino profissional. Uma das causas do atrito com o pai, crente da Assembléia de Deus, foi a cabeleira que desde muito tempo cobre os ombros. Mas as discussões só aconteceram na juventude, esclarece, pois hoje já é aceito com o manequim que gosta de exibir.



Inspiração no morro de Mãe Luíza
O segundo encontro com o artista foi no seu ateliê, em Mãe Luíza, situado na rua Largo do Farol, nas proximidades do monumento que identifica o bairro, no mesmo endereço em que mora com a esposa Nilza, a sogra e o filho Lenon Li, nome dado em homenagem ao ex-Beatle John. Naquela casa simples, despojada de luxo, ele às vezes trabalha freneticamente, às vezes se entrega ao ócio das entressafras.
Certamente é ali, naquele bairro, que Marcelus Bob encontra inspiração na fauna humana para compor os personagens que permeiam sua obra. Nas vizinhanças todos o conhecem, todos sabem quem ele é. Parece ser tão popular quanto era um outro ilustre morador daquele morro, já falecido, o poeta dândi Blecaute.
Já ocorreu de levar seus quadros para a bodega do Deda, onde entre um gole e outro fica colhendo as impressões do povo a respeito da sua arte. Nestas ocasiões, os “humanóides encapuzados” costumam provocar polêmica. As figuras são interpretadas de muitas maneiras diferentes. Uns acham que elas são coisas de Deus, outros, do diabo. Uma mulher negra disse que os tipos sombrios que apareciam naquela tela eram semelhantes aos da Ku
Klus Klan, organização criminosa e racista dos EUA.
Segundo Marcelus Bob, as pessoas simples do morro têm uma sensibilidade aguçada pela arte de viver.
A serena rebeldia de Marcelus Bob o levou a buscar outro canal de expressão para fazer ecoar seu uivo iconoclasta. Foi assim que fundou há 12 anos, e ainda hoje lidera, o Grupo Escolar, uma banda de rock pesado, aliás pesadíssimo, como ele mesmo frisa, no qual toca guitarra e atua como compositor e vocalista. Pelo grupo passou gente da qualidade de Tadeu Litoral, Paulinho Procópio (também fundadores), Cleudo Freire, Geraldinho Carvalho e Ilo Sérgio. Hoje, ao lado de Marcelus Bob, figuram Glauco (baterista) e Leão (baixista). Numa das letras composta em parceria com Paulo Procópio, na música intitulada “A Bomba”, está escrito o singelo alerta: “Bomba... vamos explodir essa bomba/bomba, vamos trocar bombons por bomba”.
O artista que tempos atrás teve problemas com a polícia por sair nas madrugadas frias borrando os muros da cidade com “grafites”, agora se debruça sobre um projeto para comemorar os 25 anos de vida artística. Além de promover uma exposição, em data a ser definida, quer publicar um livro, pelo Sebo Vermelho, com fotos das séries de quadros que pintou (humanóides, repentistas, rendeiras, pescarias, instrumentos musicais, paisagens litorâneas, etc...). Os textos vão ficar sob a tutela de Dácio Galvão, Jota Medeiros e João da Rua, só para citar alguns.
Sua produção, neste período, é grande. Calcula uns cinco mil quadros, de todos os tamanhos e formatos, incluindo os minúsculos.
Talvez seja exagero. Talvez não. Atualmente participa do M8M (Movimento 8 de Março – Dia do Artista Plástico), que busca movimentar as artes plásticas no Estado.
É certo, contudo, que Marcelus Bob continuará produzindo e expondo.
Ele que já perdeu a noção de quantas exposições participou, contabiliza seis prêmios na sua carreira, dois deles conferidos pela Fundação José Augusto e outros dois em circuitos artísticos do Nordeste. É quase certeza, também, que toda vez que vê uma paisagem deslumbrante, como uma lua cheia despontando por trás das dunas e iluminando a vastidão do mar, o filho de dona Odete pega lápis e papel e registra. Faz bem à alma.

por Alma do Beco | 12:34 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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