terça-feira, abril 05, 2005

UM HOMEM, TANTAS HISTÓRIAS



Ele me desafiou:
- Quero ver se você é poeta mesmo se recitar “batatinha quando nasce”.
O desafio estava ganho, comecei:
- Batatinha quando nasce, esparrama pelo chão...
Prossegui até “trago papai no bolso e mamãe no coração”.
O bolso rasgou-se e papai caiu no chão. Ele não achou graça nenhuma. Não conformada, resolvi fazer cosquinhas nele como costumava fazer em Lucas, o neto, nos momentos de brincadeiras. Depois, tudo se perdeu na imensa dimensão dos sonhos.
E foram tantos outros, todos na mesma noite. Pareceu que naquela noite ele multiplicou-se para habitar os sonhos de muitos da família. No de mamãe, estendeu-lhe a mão, e apenas a mão estava visível, como se lhe pedisse ajuda. Ela, assustada, sem entender, chamou pela irmã, sem lembrar que ela já se encontrava na outra dimensão. Provavelmente, por já ser conhecedora dos caminhos e da dor da passagem. E vieram outros. Alguns tão diretos como um aviso. Outros com detalhes e ensinamentos que se revelaram no devido tempo.
E, no tempo, ele viajou.
Passou para o tempo sem medidas. Sem pressa nem dor.
O tempo de encontrar os amigos e familiares que foram antes. O tempo de colher os frutos do que plantou, do amor que espalhou, do exemplo que deu.
Ele, que sempre foi um homem simples, fez seu último passeio acompanhado por quase todos os habitantes daquela cidadezinha simples à beira-mar, onde vivera seus dias mais tranqüilos, quando já não havia mais obrigação com o tempo para o trabalho remunerado. Nesse tempo, ele se debicara a difundir músicas, seu hobby preferido, quer através do sistema radiofônico que se distribuía em alguns pontos da cidade, quer através da sua aparelhagem de som, quando a colocava no alto da colina onde morava, direcionada a cidade, para que todos se deliciassem com os chorinhos, MPBs, músicas clássicas e tantos outros gêneros de sua eclética discoteca.
Naquela tarde, porém, não havia música instrumental. O fundo musical que se formou foi uma composição única, jamais reproduzível, para uma sinfonia de despedida. Foram os chiados dos calçados se arrastando no barro molhado pela chuva que cessou em atenção ao cortejo. A eles, somaram-se o farfalhar dos coqueiros açoitados pelos ventos inquietos; o som das ondas que quebravam perto da rua, em maré cheia, como se quisessem também dizer adeus; as orações e cânticos religiosos, porque religioso ele sempre fora.
Havia um clima místico, quase surreal, e, por breve momento, senti-me como um personagem de um filme ou romance de Jorge Amado. Todos os sons misturavam-se e, mesmo assim, conseguia distinguir um a um. Os cheiros de gente simples: óleo de coco, perfume de feira, cachaça, suor, cigarro, maresia e flores. O odor que subia da terra molhada pela chuva como se ela fosse agora um útero materno macio que se abria para receber seu filho de volta. Já não sabia precisar se o que sentia era êxtase ou agonia; tristeza ou exaltação por estar ali, acompanhando sua urna tão disputada por todos os homens, como se fosse uma honra, uma última homenagem, uma retribuição segurá-la nem que fosse por poucos minutos.
E, assim, cumpriu-se mais um dos muitos sonhos de despedida que sonhamos.
O mar despediu-se, o vento, as árvores e Heitor, o cachorro companheiro de tantos anos, também não poderia deixar de fazê-lo. Ele, que havia abandonado a casa da colina desde que seu dono voltara para Natal, também o fizera em atenção e solidariedade à mãe dos seus filhotes, a cadela do sítio vizinho, sua namorada. Nem imagino como ele tomou conhecimento, mas ele estava lá, naquele cemitério, de longe, observando a cena, atento, tristonho, dizendo da sua dor apenas com o olhar. Ele, Heitor, o cachorro fujão e apaixonado, também esteve na sua partida, meu pai.
Hoje, estás aí.
Sei que é um lugar bom, porque muito bom tu foste. Caridoso e amoroso, cumpriu a lei máxima do evangelho. Trabalhador, certamente, logo que se adaptar, irá continuar seus trabalhos de boas semeaduras, de ensinamentos e exemplos.
Esteja em paz, querido pai. Nós, aqui, guardaremos os melhores momentos de sua estadia. E, como lhe disse em nossa última conversa: agradecemos a Deus pela felicidade de tê-lo como pai; por ter recebido seu carinho, seu exemplo de homem probo, digno, íntegro. Lembre-se sempre: te amamos muito e te amaremos por toda a eternidade.


Ana Cristina Cavalcanti Tinôco
Natal, 30 de março de 2005

por Alma do Beco | 8:39 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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